Por Maurício Moreira Cardoso
Professor do curso de Letras/Língua Inglesa da FAFIDAM/UECE


E se a religião for apenas uma espécie de seringa pela qual for administrado o soro das maiores ilusões em que o homem possa aprisionar sua mente? E se a experiência religiosa servir como uma fábrica de subjetividades postiças capazes de encobrir nossa verdadeira identidade concernente às relações fundamentais que temos com o Universo até agora conhecido e por conhecer? E se a religião servir como um dos mais eficientes instrumentos para o estabelecimento e manutenção do poder exercido por grupos de seres humanos tão suscetíveis a falhas e a enganos quanto qualquer representante da espécie humana e que, ao mesmo tempo, têm interesses nada altruístas?
As perguntas acima remetem a uma série de hipóteses bastante interessantes, as quais surgem pela simples transformação em afirmações a serem cuidadosamente investigadas. Por uma observação superficial, podemos apontar que as religiões ocidentais – em sua maioria – são marcadas pela questão da dualidade entre o que se considera como bem e o que se considera como mal. Tal como uma estrutura fractal, a referida dualidade parece derivar um feixe considerável de outras dualidades, como a verdade e a mentira, o falso e o verdadeiro, o divino e o humano, o mortal e o imortal, o finito e o infinito, o céu e o inferno, o sagrado e o profano, a vida e a morte, e por aí segue. No entanto, parece frutífero, para efeito do entendimento do funcionamento do mecanismo das dualidades na fabricação do “soro das ilusões”, analisar a dualidade que calculamos ser a dualidade fundamental: a luta entre o “Bem” e o “Mal”.
Por uma série de narrativas, rituais e práticas religiosas, cria-se na mente dos seguidores a falácia de que existe em nosso Universo algo que pode ser marcadamente, e sem sombra de dúvidas, apontado como a expressão do “Bem” – o Bem enquanto valor absoluto. Consequentemente, tudo aquilo que sobra nessa relação dual não pode ser outra coisa senão a expressão do “Mal”. Bem e mal são suas forças que colocam o indivíduo em boa ou má posição perante si mesmo e perante outros indivíduos. Pior do que isso, esses extremos determinam o seu destino, que salta de uma condição temporal para uma condição atemporal e não passível de mudança, uma vez cruzado o limiar que separa finitude e infinitude. Pronto, está arquitetado o princípio ativo disso que chamo o “soro das ilusões”, o qual promove a construção de uma subjetividade humana extremamente problemática, assolada por uma gama de transtornos os quais, acima de tudo, colocam o indivíduo em uma situação deplorável perante um deus artificialmente construído.  Esse deus construído é sempre cercado de contradições e de narrativas que não se encaixam, nem fazem sentido por si mesmas, uma vez que não respondem a um padrão lógico de raciocínio. Assim, esse deus nunca é completamente entendido, posto que apresenta uma configuração difusa, imprecisa, resultando que esse deus jamais pode ser alcançado. Em última análise, o mal estar do indivíduo se estabelece perante ele mesmo. A única coisa que ele “sabe” bem sobre si, enquanto essência espiritual, é que é um desgraçado (destituído da graça de seu deus). Por quê? Porque seus ancestrais pecaram, fizeram algo que não deviam, embora nunca tenha estado logicamente claro por que aquela ação que o desgraçou não era correta. Nestes termos, ele faz parte de uma linhagem de seres culpados, delinquentes, e que, acima de tudo, devem se sentir como tal.
As forças que constrangem o indivíduo religioso ocidental são, principalmente, o medo (da danação eterna e do desconhecido) e o sentimento de culpa (por algo que os antecessores fizeram, ou que ele, na mesma condição, faria). A Psicologia moderna tem procurado entender o efeito de sentimentos negativos como o medo, por exemplo, sobre a percepção e cognição humanas. Já a culpa, conforme a teoria da Gestalt, provoca alterações internas no indivíduo, notadamente, na percepção e em sua autorrepresentação, tomadas em um contexto global e relacional. Por seu turno, indivíduos cuja capacidade cognitiva é limitada são mais fáceis de serem controlados e teleguiados. A propósito, o filósofo indiano, autor de diversas conferências proferidas nos Estados Unidos e na Inglaterra no final do século XIX, Swami Vivekananda afirma que a Filosofia Vedanta não reconhece o pecado, embora reconheça o erro, o equívoco. Na verdade, diz Vivekananda, o maior de todos os erros, conforme o Vedanta, é propalar que somos fracos, que somos pecadores, criaturas miseráveis, e que não temos a capacidade de realizar isso ou aquilo. Sempre que pensamos assim, afirma o sábio, acrescentamos um elo a mais na corrente que nos aprisiona e adicionamos uma camada hipnótica a mais em nossa própria alma.
Um indivíduo que pauta sua percepção por uma mera relação dual apresenta uma subjetividade que vive em eterno conflito com seu meio. Sou eu e o outro. É o bem e o mal, a vida e a morte. Basta lembrar o medo irracional que alimentamos da morte como fenômeno marcado, sem nos darmos conta que vida e morte são extremos de um mesmo fenômeno, pois nunca encontramos a vida isolada da morte e vice-versa. Mas somos ensinados a negar um e afirmar o outro. Queremos somente a beleza e ignoramos a feiura; lutamos pela juventude e viramos nossa face para a velhice. Contudo, toda negação de um extremo da dualidade implica, na verdade, a negação do fenômeno como um todo, e, dessa forma, o verdadeiro desequilíbrio se instala. Vale ressaltar que o recurso das dualidades é um importante meio de julgamento. Por exemplo, a ação cooperativa entre a visão esquerda e a direita nos fornece a visão em profundidade; a cooperação entre ouvido esquerdo e direito nos fornece a origem espacial dos estímulos sonoros, e assim por diante. O equívoco apontado aqui, no entanto, está em considerar os extremos da relação dual como pontos fixos imutáveis e irreconciliáveis.
A subjetividade protética envolve todo um programa de realização – visto que objetiva provocar uma distração que nos afaste da tarefa de construirmos nossa própria subjetividade – que nos leva fatalmente a um estado de infelicidade, sempre antecedido por ataques frequentes de ansiedade, depressão, angústia etc. Somos estimulados a nos destacar, a sair em busca de uma realização que se encontra em um plano meramente objetivo. Nestes termos, quero ser lembrado, realizar ações que me imortalizem, quero que meu nome nomeie praças, ruas, instituições. Mas para me destacar tenho me engajar em um esquema de competição que implica a neutralização do heterogêneo, do outro. Desse modo, formamos grupos para nos proteger de outros grupos e de certos indivíduos em particular, e de grupos que ainda deverão ser criados, porque é assim que tudo funciona. No mundo inteiro, a partir dessa perspectiva, somos muito parecidos; somos invejosos, gananciosos, acumuladores, agressivos, adotando um módulo constante de defesa. Ainda assim, aprendemos e até desenvolvemos um conjunto de estratégias de dissimulação que nos fazem parecer cooperativos, interessados no outro, altruístas, pacíficos. Dividir para reinar, eis a mãe das estratégias de controle. Nunca somos estimulados a ver o quanto temos em comum, mas o quanto temos de diferente, embora as diferenças sejam mínimas diante dos traços que compartilhamos. A referida divisão também implica afastar o indivíduo de si mesmo.
A tendência a nos ver fora das relações que na verdade nos constituem, com certeza, ajuda a explicar a destruição que temos causado à Mãe Natureza e ao Planeta Terra como um todo, aos nossos semelhantes e à nossa própria qualidade de vida. Ao contrário, se entendermos que não existimos fora das relações necessárias e fundamentais que permeiam o Universo, teremos mais chances de sobrevivermos diante de tudo que nos assombra.  Talvez um tipo de inteligência emergente seja aquele relacionado à capacidade de desconstruir o estado de inconsciência que tem caracterizado a nossa vida, o qual, certamente, não nos define como genuinamente humanos.